Imagem do cabeçalho da página
 
 
Notícias

Entrevista do Bastonário à Rádio TSF e jornal Dinheiro Vivo

 

O Bastonário da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, Virgílio Macedo, foi entrevistado na TSF e no Dinheiro Vivo, no passado dia 22 de maio. Nesta entrevista, realizada pela Diretora do Vida Económica, Joana Petiz e pelo Editor de Economia da TSF, Hugo Neutel, foram tratados vários temas de interesse para os auditores.

 

Partilhamos a entrevista na integra, que também pode ser lida e vista no site da Rádio TSF e do Dinheiro Vivo.

 

Estamos a viver a maior crise de sempre e da qual saiu uma profusão de legislação e regras para apoios e subsídios que muitos têm dificuldade em acompanhar. Quais serão os efeitos disso para a organização das empresas e das suas contas? 

Vivemos tempos únicos e houve necessidade de apoiar empresas e famílias para fazer face às dificuldades. Isso terá consequências num futuro próximo e nós temos esse papel de dar apoio às empresas e credibilidade à informação financeira apresentada por elas. Somos um catalisador de confiança nas contas das empresas e nesse sentido defendo que a Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (ROC), os auditores, deverão ser chamados a validar esses apoios concedidos às empresas, nomeadamente no sentido de constatar se foram apropriadamente usados. Todos sabemos que houve avales do Estado relativamente a empréstimos concedidos a empresas, para fazer face aos custos da pandemia que em algumas situações eventualmente não foram usados para os custos de pandemia mas para outras funções, ou até para substituir empréstimos com garantia da empresa por outros 90% garantidos pelo Estado. Enquanto cidadão e enquanto bastonário, defendo que, num futuro próximo, deve ser feita uma análise a esses empréstimos no sentido de validar se foram utilizados corretamente. Se sim, ótimo, se não, deve retirar-se a garantia do Estado. Nós somos profissão de interesse público e isso está no âmbito da nossa função.

 

Quem devia tomar essa iniciativa? O governo?

Já pedi uma audiência ao ministro da Economia para equacionar essa avaliação a posteriori - pode ser a 31 de dezembro. Estamos a falar de muito dinheiro, são garantias de centenas de milhões de euros.

 

E que recetividade teve?

Ainda não tive oportunidade de lhe falar, porque cheguei ao cargo há poucos meses e parte deles foram de confinamento. Já estive com o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e o das Finanças, com o ministro do Planeamento... haverá outros agendamentos.

 

Isso coloca também dificuldades. São milhares de empréstimos para analisar...

Não é uma tarefa hercúlea. Pode até haver algum tipo de amostragem relativamente a essa matéria. Acho que existem meios para fazer face a esse trabalho que os auditores podem prestar ao país.

 

Mas as empresas queixaram-se de excessiva triagem à partida e de como isso até atrasou os apoios. Essa fiscalização não está feita à partida?

Uma questão é a fiscalização a anteriori, outra a posteriori. O que defendo é esta numa data posterior à utilização dos empréstimos.

 

O dinheiro deve ser devolvido?

No limite, sim. Mas pelo menos a garantia do Estado devia deixar de existir em caso de irregularidades. Acredito que a maioria das empresas cumpriu as regras, mas havendo situações pontuais de uso indevido devem ser analisadas.

 

A Ordem tem recebido mais solicitações nesta fase?

Tem sobretudo tido um trabalho acrescido porque há obstáculos novos: o acesso às empresas, presencial, o acesso a alguns procedimentos de auditoria, as próprias equipas de auditores que têm de funcionar em espelho... há um desafio interno grande às sociedades e os ROC têm respondido de forma brilhante. E não é fácil. Ainda agora, o segundo confinamento, em janeiro, apanhou os trabalhos de auditoria a iniciar-se - em 2020, o confinamento chegou em meados de março, portanto já com os trabalhos a concluir-se, com o trabalho de campo quase todo feito. Agora, os auditores não podiam adiar o trabalho, porque há necessidades de relatórios para entregar no banco, para pedir financiamento, para projetos - e tivemos de nos adaptar e fazer trabalho adicional que foi bem sucedido. O feedback que temos das empresas é de reconhecimento disso.

 

Que papel podem os auditores assumir na aplicação dos fundos europeus?

Já falei com o ministro do Planeamento e houve um reconhecimento da importância do papel dos auditores na fiabilidade e transparência desses fundos que vão ser usados por Portugal. O crescimento da economia nos próximos anos vai ser condicionado pela utilização eficaz e eficiente não só da bazuca, mas do quadro de apoio plurianual. Em dez anos, são 61 mil milhões de euros. E o que transmiti a Nelson de Souza - com grande recetividade - foi que os auditores são os profissionais mais bem preparados para assegurar a transparência da utilização desses fundos e a fiabilidade relativamente à informação financeira sobre a sua utilização. Penso que os auditores têm de intervir não só na componente de verificação documental dos investimentos, mas desde o início do projeto até à sua conclusão. Ou seja, quando uma empresa submete um projeto, ter de dizer qual é o revisor, o auditor que fará a verificação, e essa intervenção ser feita até à verificação física do projeto, a fechar o círculo. O país tem um grande desafio de usar bem esses fundos. E queremos ser um parceiro do governo na salvaguarda da transparência da sua utilização.

 

O ministro recebeu bem essa ideia de fazer dos ROC uma espécie de fiscais?

Já existia isso no que respeita à verificação documental. Eu alertei o ministro de que seria apropriado e eficaz se houvesse essa intervenção mais transversal. E houve boa recetividade, ficou acordada uma reunião entre o Ministério, a Ordem e a Agência para a Competitividade para começar a definir metodologias para efetuar esse controlo de projetos de investimento.

 

O PRR está bem desenhado também ao nível da fiscalização dos apoios e sua utilização?

Estou convencido que o governo tem ideia que é fundamental haver transparência e rigor na utilização destes fundos. Nem me passa pela cabeça que o governo queira facilitar essa questão de salvaguarda do interesse público de utilização eficaz e transparente dos fundos. Porque isso é que dá confiança às pessoas, nomeadamente na classe política e económica.

 

Grande parte destes fundos serão aplicados pelo próprio Estado. É possível essa fiscalização?

Haverá situações em que pode haver essa fiscalização, ver se os fundos afetos a determinados projetos foi usado neles ou, por exemplo, para despesas correntes - o que não acredito que aconteça. Acho que há espaço para essa verificação também a esse nível, sempre numa perspetiva de transparência, que é o que defendo na Ordem: a maior transparência na relação externa e entre os membros. Divulgo tudo, porque acho que a Ordem tem de ser transparente. É isso que tenho aplicado - e tenho-me dado bem.

 

As empresas sairão mais fortes e mais sãs desta crise?

Não tenho dúvida de que sairemos com um tecido empresarial mais forte. Os mais fortes e capazes sobrevivem às crises. Nas crises há sempre grandes oportunidades para os mais bem preparados, para os que têm mais capacidade de superar dificuldades. Penso que sairemos com um tecido empresarial mais saudável, sendo que esse tecido, sobretudo no norte, é muito feito de PME.

 

São 98% de todas as do país.

Sim, mas a empresa familiar é muito comum no norte e centro. Temos de ter consciência que algumas dessas têm pouca capacidade de financiamento, de gestão profissional, mas têm grande capacidade de adaptação e de sobrevivência. Houve empresas têxteis que de um dia para o outro ficaram com zero encomendas. Não foi de 100 para 40, foi zero. O calçado: as pessoas em casa não gastavam sapatos... E mesmo assim esses empresários adaptaram-se, foram à luta e sobreviveram. E estarão mais fortes no fim da crise.

 

O fim das moratórias pode ser um problema?

Ele é inevitável, tem de se começar a fazer sob pena de - e aqui falo em nome individual - as pessoas interiorizarem que aqueles empréstimos já não são para pagar. E isso é perigoso, até para o sistema financeiro. Mas deve ser uma retirada gradual. A partir de setembro, começar lentamente a pôr as pessoas a pagar alguma coisa até chegarem ao que estavam a pagar em 2019. Se continuarmos a empurrar as coisas, teremos um problema de liquidez na banca. Porque se interioriza que já não é para pagar e quando se pede mais 200 euros as pessoas entram em incumprimento... com o efeito dominó que todos conhecemos.

 

Regressando aos auditores: casos como o BES ferem a imagem dos auditores e dos ROC?

Quando há um problema existe sempre necessidade de culpar rapidamente alguém. Houve pelo menos quatro bancos com problemas no país e ninguém acredita que o Banco de Portugal, enquanto supervisor do sistema financeiro, não cumpriu as suas funções e obrigações prudenciais. E acredito que a CMVM enquanto supervisora de emitentes, também fez o seu trabalho de fiscalização. Às vezes é mais fácil culpar o auditor.

 

É o primeiro elo dessa cadeia.

Discordo. É o último. Os primeiros responsáveis por situações menos corretas são as administrações - as pessoas esquecem-se que são elas que tomam decisões menos apropriadas com repercussões no futuro. Os auditores não emitem opinião sobre decisões de gestão.

 

Assinam as contas.

Somos os últimos da fila e querem pôr-nos em primeiro. O primeiro é a administração. Depois, BdP e CMVM, que também têm relação direta com os bancos. E depois os auditores, que emitem uma opinião datada sobre demonstrações financeiras históricas. Um julgamento profissional que é feito em dada data, relativamente a informação prestada pela empresa e que vale naquela data. Não podemos analisar uma opinião de um auditor passado cinco anos e com circunstâncias que se alteraram. A maior prova de que os auditores têm tido um comportamento irrepreensível na execução do seu trabalho na banca é que têm ganho todos os processos em tribunal. Incluindo no mais mediático, o do BES. Já duas instâncias diferentes deram razão aos auditores, porque fizeram o trabalho que lhes competia e com a responsabilidade, rigor e profissionalismo apropriados. Claro que há aqui um expectation gap, o que as pessoas esperam do trabalho do auditor - a gestão de expectativas é importante em tudo. E aqui é quase como se, ao emitir uma opinião, estivessemos a emitir uma opinião absoluta e intemporal. Não é verdade, é um julgamento profissional, com regras determinadas pela auditoria, com limitações. E tem de se saber ler os relatórios. Por vezes há reservas na certificação legal em relação às demonstrações financeiras e as pessoas não entendem o que o auditor está a dizer. Se não tivesse havido trabalho rigoroso, já tinham sido condenados.

 

O cidadão comum perguntará: como é que se certificam contas que escondiam ilegalidades?

Não se pode pôr as coisas nesses termos, tem de se ver a questão específica, para ver até que ponto há culpas do auditor. Se o auditor não executou os procedimentos de auditoria definidos, existe culpa objetiva. Mas até agora nada disso se provou, as decisões judiciais foram favoráveis. O que temos de ver é o que está na génese dessas situações. No caso da banca, há sempre questões inerentes a imparidades e provisões, mas o julgamento do auditor é datado: naquela data, referente àquelas demonstrações financeiras. Por exemplo: hoje os auditores emitem opiniões sobre as demonstrações financeiras da banca; se daqui a seis meses o governo acabar com as moratórias e o malparado subir em flecha, as necessidades de imparidades escalam e os bancos entram em dificuldades. E as pessoas dirão que não vimos problemas. É essa expectativa, esse entendimento que nós, Ordem, e a minha equipa, assumiu ser importante explicar às pessoas. O que é auditoria, o que faz o auditor, o que quer dizer quando emite opinião, que limitações tem, o que é a materialidade aplicada às demonstrações financeiras... Não há opiniões absolutas nem se analisa 100% da informação da empresa.

 

E só analisa informação dada pela empresa... No caso do BES, o que aconteceu? Os auditores não tiveram acesso à informação que permitira detetar?

Obviamente. Os auditores no final de cada trabalho pedem uma declaração do órgão de gestão que é assinada por todo o conselho de administração no sentido de dizer que não ocultaram informação - o auditor não está 24 horas por dia na empresa. E as empresas têm cada vez mais transações complexas e nós temos de ter instrumentos tecnológicos mais sofisticados para responder. Nós temos de ver se essa informação foi ocultada ao ROC. Uma coisa é o auditor não ter ido buscar a informação que devia outra terem-na ocultado. E neste caso o auditor não tem culpas.

 

Os revisores deviam ter um papel mais ativo quando detetam irregularidades nas contas? Incluindo eventualmente denúncias às autoridades criminais?

No caso dos emitentes, quando o auditor vai emitir um relatório de auditoria com reserva, tem de avisar nomeadamente a CMVM.

 

Essa denúncia está então implícita.

Está implícita. A CMVM não é surpreendida com um relatório com uma reserva. Antes o auditor avisa e esse aviso é feito quando o auditor formula o seu julgamento profissional, que vai haver um relatório modificado nessa empresa. Que tanto pode ser em setembro como em dezembro ou até só em janeiro ou fevereiro. É quando ele estiver convencido. Os auditores emitem mais de 30 mil certificações legais de contas por ano. Emitem cerca de 15 mil reservas sobre demonstrações financeiras das mais variadas empresas. Temos de ver é quais são as consequências dessas reservas. Tivemos empresas com valores emitidos e que têm reservas nas contas. Qual é a consequência que isso tem?

 

E qual é?

Não tem tido.

 

E de quem é a responsabilidade, da CMVM?

Os supervisores deverão fazer uma análise apropriada quando existem esses relatórios modificados para ver as razões e tomar as devidas medidas.

 

E não o fazem?

Têm feito pouco.

 

O governo reforçou nesta semana os poderes da CMVM ao nível da auditoria e supervisão de idoneidade, qualificação e experiência dos ROC. Como vê essa mudança?

A Ordem concorda inteiramente que haja uma entidade pública que faça a supervisão do trabalho de auditoria. Não somos uma Ordem corporativista, tanto não somos que temos controlo de qualidade sobre os nossos membros desde os anos 90 e todos os anos há mais de 100 ROC que são objeto de controlo de qualidade. Mas não é um controlo inócuo, é com consequências. O trabalho de auditoria é cada vez melhor mas por vezes há que levantar processos disciplinares a colegas que tiveram comportamento não adequado pelas regras da auditoria. O que não podemos é caminhar no sentido da desregulação, não pode colidir com o interesse público. Eu defendo que quem não tenha idoneidade e seja julgado e condenado a perca para desempenhar funções de interesse público. Mas não podemos pôr esse poder numa entidade de forma ad hoc. Temos de ter alguma prudência na forma como se faz o controlo da idoneidade por parte da CMVM, porque esse trabalho é feito anualmente pela Ordem - e quando há problemas atuamos.

 

Já teve essa conversa com a presidente da CMVM?

Essa legislação já vinha sendo discutida há muito e foi aprovada em Conselho de Ministros na quinta-feira da semana passada. Este é o tempo para discutir algumas matérias relativamente a esse novo quadro de supervisão de auditoria. Sendo que somos sempre defensores do incremento do rigor e qualidade dos trabalhos de auditoria. E defendemos a supervisão. Mas uma supervisão proporcional. A CMVM, enquanto regulador, pode emitir recomendações mas não dar ordens à Ordem dos ROC. A Ordem não é tutelada pela CMVM.

 

E é o que está a acontecer?

Não será o que vai acontecer de certeza, porque eu defendo uma correção de relações entre as duas entidades com independência de ambas. Cada um tem de saber ocupar o seu lugar - nós sabemos ocupar o nosso e julgo que a CMVM estará também imbuída do mesmo espírito de levarmos a bom termo a supervisão da auditoria.

 

Que papel podem os ROC ter nas empresas e nos bancos nestes tempos de recuperação económica?

Os ROC, sobretudo em PME, quase funcionam como consultores. Os empresários usam os conhecimentos técnicos dos ROC para lhe fazer o aport de muitas coisas que por vezes não tem na sua formação base. Quando nos pedem conselho, eu e os meus colegas emitimos opinião de forma profissional sem interferir na gestão. Damos opinião técnica mas não interferimos. Como profissionais ao serviço das empresas, os auditores fazendo bem o seu trabalho de credibilização da informação financeira da empresa, estarão a fazer um ótimo serviço à economia, às empresas e ao país. É esse o nosso objetivo. Temos é de saber cumprir, fazer bem feito o nosso trabalho, com rigor, independência e competência.”

 

In, jornal Dinheiro Vivo e Rádio TSF de 22 de maio de 2021